Na Softway, temos a sorte de ter uma pessoa assim, completa. Filho de artistas, neto do Professor António Gouvêa Portela - reconhecido entre os pares por ser o grande impulsionador da inteligência artificial em Portugal, fundando o primeiro Centro de Estudos de Cibernética no IST - engenheiro informático de formação, mas humanista de espírito. Não é nada mais, nada menos, que o fundador da Softway, Nuno Portela.
Voltando a Alan Cooper, também ele programador, apercebeu-se desde muito cedo, que os programadores demonstravam uma propensão para se focar mais nos aspetos técnicos do seu trabalho e a perder de vista as necessidades e as perspetivas dos utilizadores finais. Como resultado, os produtos de software criados naquela época tendiam a ser excessivamente complexos e pouco intuitivos para os utilizadores comuns.
Dado o contexto, torna-se evidente, que o título do livro não é mais do que uma metáfora que satiriza o impasse que se vivia no sector da tecnologia nos anos 90, na medida em que aqueles deveriam ser responsáveis pela conceção do software estão demasiado imersos no seu próprio mundo, para se aperceber daquilo que faltava para colmatar o hiato entre o produto e o consumidor final.
Foi este desfasamento de realidades, e a urgência, sentida pelo autor, de as conciliar, que levou Cooper, em pleno dolce far niente, enquanto passava férias com a família em Itália, a começar a escrever o livro que 1/4 de século depois continua a resistir à prova do tempo. Segundo Cooper, a resolução do problema passava por adotar uma filosofia de design mais empática e centrada no utilizador, orientada por uma compreensão dos objetivos, tarefas e comportamentos de quem vai utilizar os produtos. O livro, apesar das suas quase 300 páginas é de leve leitura, algo que deve muito a uma escrita clara e acessível, e aos exemplos práticos que acompanham as teorizações do autor. Por sua vez, estas quase 300 páginas são pautadas por um sentido de humor cativante e sagaz, que tanto caracteriza Alan Cooper. Deixamos apenas uma passagem para vossa consideração:
“There is a widely told joke in the computer industry that goes like this: A man is flying in a small airplane and is lost in the clouds. He descends until he spots an office building and yells to a man in an open window, "Where am I?" The man replies, "You are in an airplane about 100 feet above the ground." The pilot immediately turns to the proper course, spots the airport, and lands. His astonished passenger asks how the pilot figured out which way to go. The pilot replies, "The answer the man gave me was completely correct and factual, yet it was no help whatsoever, so I knew immediately he was a software engineer who worked for Microsoft, and I know where Microsoft's building is in relation to the airport."
Não nos fazia sentido ler este livro, sem depois ir conversar com o Nuno e fazer uma ponte com aquilo que tem sido a sua experiência, não só enquanto CTO da Softway, mas também enquanto engenheiro informático que trabalha no meio há mais de 30 anos.
1. Houve uma grande evolução tecnológica num espaço de 25 anos, entre o momento em que o livro foi publicado e os dias que correm. Ainda assim, sentes que o livro se mantém relevante?
Sim completamente, e cada vez mais. A evolução tecnológica tem um crescimento exponencial e está cada vez mais entranhada no nosso dia a dia. A partir do momento em que querermos que a tecnologia esteja ao serviço das pessoas, que deve ser o nosso objetivo, temos que ter o utilizador como o centro do desenvolvimento. O objetivo final é que a tecnologia nos sirva, nos sirva como utilizadores e nos sirva como humanos.
2. Sentes que o user-centered design se tem adaptado aos desafios e às tendências do mundo tecnológico atual? Lembras-te de algum exemplo, em concreto?
Acredito que é absolutamente essencial praticar-se o conceito de user-centred design. E a história, no fundo, tem-nos mostrado, por inúmeros exemplos, que as tecnologias que “ganham” são aquelas que põe as pessoas em primeiro lugar e que não produzem infoexcluídos. Já agora, esta coisa dos infoexcluídos é uma expressão que detesto! Não existem infoexcluídos, existem sim tecnologias homoalienantes (não sei se esta palavra existe!), que no fundo afastam e excluem as pessoas. O problema não está nas pessoas, mas sim na tecnologia. Quando a tecnologia não serve as pessoas, pouca utilidade tem.
É muito comum nos sectores de atividade e da sociedade em geral, os vários grupos terem linguagens e dialetos próprios, e portanto, só quem está inserido nesses mesmo grupos, ou teve formação adequada, é que tem depois a fluência e a capacidade de entender essas línguas. Enquanto humanos, somos seres sociais temos uma grande tendência para criar grupos, tribos, conjuntos de pessoas pela sensação de pertença que despoleta em nós. Esta linguagem própria faz com que se possa distinguir facilmente quem pertence ao grupo de quem não pertence ao grupo. Além disso, tem outra vantagem, ao identificares uma pessoa que pertence à mesma tribo que tu, mesmo que não a conheças de lado nenhum, estabeleces logo uma relação de confiança à priori, ou seja, sabes que conhece o mesmo que tu, que fala a mesma língua que tu.
É algo que acontece em todas as profissões, mais ou menos especializadas, desde os advogados, aos médicos, todos têm uma linguagem própria. Nesse sentido, os developers, os programadores, os engenheiros, não são a exceção, também têm o seu lingo, mas muitas vezes esquecem-se de que os produtos que estão a desenvolver vão ser usados por humanos, que não fazem parte do seu grupo. Não pertencendo à sua tribo, não entendem aquela linguagem e depois os produtos são impercetíveis e as pessoas que os vão utilizar vão-se acabar por sentir inaptas, quando o problema não está nelas. Há uma tendência enorme no nosso setor de developers e de engenheiros em falar de uma forma excessivamente técnica, mas há que saber distinguir quando se está a falar internamente, entre pares, de quando se está a tentar comunicar com os utilizadores. As linguagens são diferentes. Para mim, a falta de usabilidade, no sentido lato, dos produtos não serem percetíveis pelo comum dos utilizadores, é simplesmente uma forma de discriminação.
Quando falo neste assunto, lembro-me sempre daquele sketch do Bruno Nogueira, a falar com o suporte técnico de uma empresa de telecomunicações, que aconselho vivamente a ver.
Um bom design, é como uma boa piada... não precisa de explicação!
3. Prevês uma erosão gradual do user-centered design, à medida que a IA evolui e a automatização da inteligência se torna, cada vez, menos dependente do ser humano?
Não, não prevejo erosão nenhuma do user-centered design. Enquanto forem humanos a usar os produtos, o user-centered design será sempre essencial. Eu acho que a tecnologia tem de estar ao serviço da humanidade e não o contrário.
Se pensarmos na evolução da humanidade e da tecnologia, desde o uso do fogo até aos computadores, os avanços tecnológicos começam sempre por ser acessíveis a pouca gente, com interfaces muito complicadas, até ao momento em que a tecnologia se torna mais útil e começamos a assistir a uma democratização da mesma. Ainda assim, o foco no utilizador é transversal a estas fases. À medida que as coisas vão evoluindo, é nas interfaces, que está o maior desafio. Acho que com a evolução da IA, as interfaces vão tender a emular as nossas relações com outros humanos. Antes havia um teclado, um rato e um ecrã, agora já temos aparelhos, que são computadores, onde os utilizadores podem falar com eles e eles respondem (por exemplo, Alexa, Siri). Com o avanço da tecnologia, as interfaces caminham para se assemelhar cada vez mais a uma interação humana.
4. O autor defende acima de tudo o lema: “the number-one goal of all computer users in not to feel stupid”. (..) good interfaces should avoid presenting users with ejection seats (Cooper, 1998, p. 25). Concordas com esta afirmação? Sentes que na Softway estamos a alinhados com esta visão?
Sim, mas não sei se é o “number one goal”, acho que o objetivo principal de qualquer utilizador é conseguir concretizar a tarefa que pretende, de uma maneira, que não os faça sentir estúpidos. Quando nos relacionamos com outra entidade, seja ela uma pessoa um computador, ou um objeto, nós queremos que o nosso interlocutor seja agradável, simpático, faça o que nós pedimos de uma forma cordial, sem nos rebaixar, e eu acho que isto deve ser a base de qualquer interface. Portanto, se eu, para cumprir uma tarefa diária tenho que interagir com um computador que me faz sentir inapto, o problema não é necessariamente meu, mas sim do computador. O utilizador não é estúpido, o computador é que pode ser malcriado. É aqui que entram as interfaces, que quando estão bem feitas, funcionam como uma película afável e intuitiva entre o computador e o utilizador, para que este último consiga comunicar eficazmente com a máquina enigmática que é o computador.
Há aqui uma parte muito importante desta frase que é “good interfaces should avoid presenting users with ejection seats”, esta é uma das minhas grandes máximas, que tenho procurado transmitir aqui dentro à minha equipa, desde sempre e tento que esteja embebida na cultura de tudo o que nós desenvolvemos. As interfaces e o software têm de ser user-friendly. Friendly, no sentido humano da palavra, tal como se dissesses a um amigo que te ias atirar de um poço, ele impedia-te de o fazeres, um bom software também fará isso por ti e nunca te deixará ficar mal. Quando mais confiamos num produto, mais duradoura é a relação com o produto, e melhor tiramos partido dele.
O user-centered design está no nosso [Softway] DNA. Desde há vários anos que somos membros da Interaction Design Foundation e do Center of Humane Technology , que são organizações mundiais que estudam os aspetos da usabilidade, não só ao nível de web, mas de um ponto de vista mais universal, mas que têm a preocupação de colocar a tecnologia ao serviço dos humanos de forma inclusiva e acessível.
5. “The only thing more expensive than writing software, is writing bad software” (Cooper, 1998 p.53). Concordas?
Concordo plenamente, been there, done that! Já passámos por isso. Hoje em dia temos uma grande preocupação em ter todo o software bem escrito de início- é um investimento grande que nós fazemos. Uma das vertentes de um software bem escrito é a parte que só nós, os programadores, é que vemos. Esta parte do processo de desenvolvimento pode ser elaborada de mil maneiras, como dizem os ingleses, there’s more than one way to skin a cat, contudo há caminhos melhores que outros. As vantagens de investir o tempo necessário em perceber quais é que são os melhores caminhos no início faz com que seja possível fazer evoluir o software e as aplicações, seja do ponto de vista de performance, de segurança ou de usabilidade, de uma forma muito natural e iterativa. O bad software acaba sempre por sair muito caro.
6. No capítulo VI, o autor fala-nos de um conjunto de episódios, passados no contexto da Silicon Valley, nos quais produtos que, teoricamente, teriam um enorme potencial, falharam redondamente na fase de atingir os objetivos de vendas, pelo facto de não terem sido desenhados com o utilizador final em mente, desde o momento da sua criação. Lembras-te de algum episódio, que te tenha marcado nesse sentido? Ou seja, de um produto que, enquanto, homo logicus (Cooper, 1998, p.93), te entusiasmava, mas que que não teve o sucesso expectável?
Sim, lembro-me de um produto que me marcou porque estava entusiasmadíssimo com o seu lançamento, que foi o primeiro telemóvel com Windows Mobile – o HTC Universal. Era um telemóvel/computador de bolso com um ecrã substancial para a altura e que funcionava com o windows e com as apps do office, além disso até fazia chamadas. Falhou redondamente não só as minhas expectativas, como também se revelou ser um fiasco do ponto de vista comercial... simplesmente porque a interface não era usável. Eles tinham um bom produto de hardware, o ecrã era bom para a altura, mas limitaram-se a “espetar” o windows num telefone com um ecrã manifestamente mais pequeno do que um ecrã de desktop. Além disso, notava-se que todas as soluções de usabilidade tinham sido desenvolvidas a martelo. Por exemplo, os icons dos botões e dos links eram demasiado pequenos para a funcionalidade touch, por isso ofereciam ao utilizador uma caneta touch para compensar. Por sua vez, o tamanho da font era demasiado pequeno, não tinham adaptado o layout ao tamanho do ecrã em causa, para tentar contornar este problema adicionaram um botão de zoom. Estava tudo errado, e como telefone também era fraquíssimo, a lista telefónica era a lista de contactos outlook e encontrar o contacto que procurávamos era um pesadelo. No fim do dia, os Nokias eram mais user-friendly.
7. Na tua opinião, o que é que pode ser feito para colmatar o hiato que existe, tipicamente, entre as equipas de design e as equipas de development?
Basicamente é tudo uma questão de tradução, que tem a ver com as várias linguagens e contextos próprios de cada equipa. Cada especialidade tem a sua linguagem própria e as suas preocupações. Tem que haver alguém que fale as várias línguas (ou pelo menos duas delas) e que saiba traduzir com a maior exatidão possível o que cada um está a querer dizer. ... e esta questão acaba por se estender também à comunicação entre os clientes e accounts, designers e utilizadores, etc. Temos de ser bons tradutores e saber atribuir as responsabilidades certas, às equipas certas... não podemos deixar que os “innmates run the asylum”.
8. Há alguma parte do livro que te tenha marcado especialmente?
Acho que o livro me marcou como um todo, porque conseguiu pôr em palavras aquilo que eu sentia intuitivamente. Foi bom para consolidar e organizar as ideias e para partilha-as com a minha equipa.
Recomendo a qualquer pessoa a leitura deste livro, mas especialmente aos developers. A estes deixo apenas a ressalva: leiam-no de mente aberta, sem se sentirem ofendidos ou enxovalhados pelo autor, porque o objetivo não é esse.
Todos queremos que os produtos que desenvolvemos tenham real utilidade... e só vão tê-la, se as pessoas os utilizarem.
Ao ler este livro de Alan Cooper, chegamos à conclusão que, no fundo, somos todos inmates, uns, estão presos aos limites impostos pela sua própria existência, os homo logicus (Cooper, 1998, p.93), já os outros estão condenados a viver segundo um conjunto de limites impostos por quem concebe o universo daquilo que os rodeia. No fundo, é também nesta dependência que reside a salvação de ambas as partes, e Cooper foi uma figura fulcral no estabelecimento de uma ponte de comunicação entre estes dois mundos. Vinte e cinco anos após publicação deste livro, não existem dúvidas da centralidade que o utilizador deve ter em todas as fases de desenvolvimento de um projeto.